Transcorria o ano de 1959. Eu cursava a Quinta Série de Direito e trabalhava, como repórter, no “O Jornal” e “Diário da Tarde”, órgãos de maior circulação da imprensa amazonense.
Naquele ano, fui designado para realizar uma reportagem sobre as comemorações da passagem de mais um aniversário do então Território Federal de Roraima, governado pelo dr. Hélio de Araújo.
Viajei àquela Unidade da Federação, juntamente com o pessoal do Teatro Escola do Amazonas, que ali exibiu, com muito esmero, a peça intitulada “Morte e Vida Severina”.
Em Boa Vista, Capital de Roraima o Tribunal do Júri Popular estava em pleno funcionamento, e ali se encontravam conceituados e festejados criminalistas amazonenses, entre os quais avultava a figura admirável do mestre Abdul Sayol de Sá Peixoto.
Estava num hotel da cidade, quando fui convidado a comparecer ao Foro, a fim de dizer se aceitava ou não o patrocínio da causa de um réu pobre, sem condições de pagar advogado. O meu nome fora lembrado pelo fato de eu ser Solicitador Acadêmico (estudante de Direito, trabalhando em escritório profissional). O julgamento seria na manhã do dia seguinte. Aceitei o desafio, estimulado pelo professor Sá Peixoto que me deu sábios conselhos para minha postura na tribuna, e acerca da tese que seria levantada em defesa do réu. Mestre Abdul, como carinhosamente era chamado por seus discípulos, inteligência primorosa das letras jurídicas, brilhante Promotor de Justiça, acreditava em minha atuação, mesmo em me sabendo um neófito no ofício, visto que conhecia apenas minha atuação em tertúlias acadêmicas, inclusive havendo ganho o concurso de Orador Universitário do Amazonas.
Desse modo, o jornalista que fora fazer a cobertura dos festejos do aniversário do Território, transmudou-se no advogado, com a tarefa difícil de defender um réu que nunca vira em sua vida, com quem não mantivera o menor contato, conhecendo-o, unicamente, através do processo que lhe chegara às mãos.
Não é demais dizer que passei a noite sem dormir, estudando atentamente os autos, esperando, com ansiedade, a hora do julgamento quando veria, pela vez primeira, o réu que eu iria defender.
Tribunal repleto. O Promotor, homem experimentado na tribuna, leu o seu fulminante libelo, pedindo a condenação do réu. Do outro lado, o estreante, sem muito tempo para estudar o processo, sozinho na defesa, viu-se em palpos de aranha, pedindo a Deus que terminasse aquele sufoco. Ansiava que o Promotor acabasse de falar, para começar a defesa, que estava, como se diz, “na ponta da língua”, e que, se houvesse muita demora para falar, a língua poderia emperrar. Aí seria o fim, com o desmoronamento da confiança que lhe depositara o mestre Abdul, presente ao julgamento para assistir a atuação do seu discípulo.
Momentos difíceis, em que o suor escorria frio pela testa e ensopava a camisa e o paletó. A incerteza, a inquietude, faziam com que os minutos parecessem longos demais, “como num dia de fome”, como diria um amigo meu.
Chegou a hora da defesa. A tese levantada: isenção da pena, com base no parágrafo primeiro do art. 24 do Código Penal, “in verbis”: “É isento de pena o agente que, por embriaguez completa, proveniente de caso fortuito ou de força maior era, ao tempo da ação ou omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter criminoso do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento”.
O meu constituinte era um índio aculturado. Certa madrugada fora convidado por um seu amigo, para uma pescaria. Não ingeria bebida alcoólica. Aí, a instâncias do mesmo, passara a beber cachaça, vindo a embriagar-se totalmente e, de maneira desatinada, sem lembrar o motivo, matara o seu companheiro. Não houve testemunhas do crime. A Promotoria insistia no motivo fútil.
Da tribuna, com os dados que possuía, tracei a personalidade do réu, que permanecia imperturbável, indiferente a tudo que o cercava. Falei de seus ancestrais, da vida que levava, do seu comportamento calmo, do seu interesse várias vezes demonstrado de voltar ao meio de onde proviera, indiferente à vida da cidade; de que não era nunca ingerira antes bebida alcoólica.
Mostrei, por outro lado, que o réu não tinha a índole de um criminoso nato, pelo seu próprio estilo de vida, e que o crime se dera por um perverso acaso do destino.
Chegou a hora da decisão. Expectativa geral. Nas minhas últimas palavras da tribuna, solicitei aos jurados que fizessem uma reflexão profunda sobre tudo o que eu relatara. As palavras por mim proferidas ecoaram bem.
Decisão do Corpo de Jurados: absolvição do réu por maioria de votos. Palavras educadas de cumprimentos da Promotoria Pública à atuação do Acadêmico de Direito e a comunicação de que não iria apelar da sentença. Palavras de agradecimento do Juiz de Direito, Presidente do Tribunal do Júri, dr. Erasto da Silveira Fortes, à colaboração emprestada à Justiça pelo Solicitador Acadêmico José Roberto de Souza Cavalcante.
Encerrados os trabalhos, o improvisado advogado de defesa não recebeu, sequer, o muito obrigado do Adelino Firmino (este o nome do réu), não por grosseria de sua parte, mas por sua maneira de viver, alheio as etiquetas sociais.
O importante, porém, é que foi feita a defesa do Adelino, garantida pela lei. E eu tive, assim, a oportunidade de patrocinar a defesa de uma pessoa carente, jogada pelo destino naquela difícil encruzilhada.
Dias depois, recebi uma Certidão expedida pelo Escrivão da Comarca de Boa Vista, Território Federal de Roraima, vazada nos seguintes termos: “CERTIFICO, em virtude das atribuições que por lei me são conferidas, que, a requerimento do Doutor ABDUL SAYOL DE SÁ PEIXOTO, revendo os arquivos do meu Cartório, nele consta a folhas setenta e três verso a setenta e seis e verso, do livro de Atas do Tribunal do Júri realizada aos catorze dias do mês de setembro do ano de mil novecentos e cincoenta e nove foi apresentado a julgamento o réu Adelino Firmino. Que aberta a sessão sendo o réu pobre e não tendo advogado, o Meritíssimo Doutor Juiz Presidente do Tribunal do Júri nomeou para seu defensor o acadêmico José Roberto de Souza Cavalcante, aluno matriculado no quinto ano do Curso de Bacharelado da Faculdade de Direito do Amazonas. Certifico mais que o réu Adelino Firmino foi absolvido pelo Conselho de Sentença que reconheceu em seu favor a isenção do parágrafo primeiro do artigo vinte e quatro do Código Penal, tendo o Meritíssimo Juiz, Doutor Erasto da Silveira Fortes, ao encerrar os trabalhos, colocado em destaque a relevância do serviço prestado à Justiça desta Comarca pelo acadêmico José Roberto Cavalcante, aceitando o patrocínio de réu pobre, sem advogado constituído, por absoluta falta de recursos. O referido é verdade, do que dou fé”.
Foi remexendo o meu velho arquivo, que encontrei a Certidão acima referida, a qual me chegou às mãos por iniciativa do mestre, de saudosa memória, DR. Abdul Sayol de Sá Peixoto, dequem tive a honra de ser aluno, ele que foi um edificante exemplo de cultura e de honradez a serviço do Direito e da Justiça.